A RESPIRAÇÃO E O AMOR
O fisiologista britânico Joseph Barcroft,
que dedicou sua vida e privilegiada inteligência a entender os mistérios da
respiração e da vida intra-uterina, tornou-se célebre por emprestar o próprio
corpo a ousados e instigantes experimentos médicos – que visavam entender os
mecanismos do sistema respiratório – sentenciou na maturidade:
“A noção de vida liga-se tão intimamente à
de respiração que o próprio termo expiração passou a significar extinção da
vida e o termo inspiração, a elevação da vida a níveis sobre-humanos.”
É verdade, o sentimento popular de que
respirar é viver é quase onipresente. E essa equação tem desdobramentos:
respirar bem é viver bem; respirar mais ou menos é viver mais ou menos,
respirar mal é viver mal, quando a respiração nos falta, sentimos a vida nos
escapando, quando a respiração é fluente e fácil, torna-se tão fácil
sentirmo-nos vivos que, facilmente, nos esquecemos de que estamos vivos.
É verdade, mas faltou assinalar que, além de
significar vida, a respiração também é sinônimo de consciência e inteligência.
Vinte por cento do ar que respiramos é consumido pelo cérebro, detentor de
menos de dois por cento de nossa massa corporal. Nossa capacidade de discernir,
entender e administrar a vida é alimentada e mantida pela respiração e, dessa
maneira, respirar com amplidão significa alimentar a inteireza de nossas
capacidades mentais.
E, quanto à inteligência, a frase de
Brarcroft deixa passar um lapso de sua reconhecida lucidez e espírito crítico,
um descuido comum entre pessoas notadamente inteligentes: desde pequenos nos
foi passada a associação entre inspiração e criatividade, mas, inspiração é o
momento em que o ar entra em nós, em que pegamos algo de fora; a criatividade
devia estar muito mais ligada à expiração, o momento em que algo sai de nós
para os outros, para o mundo. Fomos treinados a nos inspirarmos em Van Gogh
para pintar um quadro, ou em Nietzsche para dizer algo, ou em Tom Jobim para
compor uma música, sempre algo que vem de fora. A criatividade deveria mesmo
ser associada à idéia de expiração.
Mas, esse é um passo a ser dado. A alguma
hora. Que pode ser agora. Por termos sido ensinados a seguir modelos que nos
são introduzidos de fora para dentro, ignoramos que podemos ser indivíduos,
ignoramos que já o somos, mas que nosso indivíduo está adormecido, congelado
dentro de nós, esperando o dia em que será acordado, reabilitado. Quando
entendermos os mecanismos da respiração, descobriremos que temos a chave para
esse “acordar”, o calor da fricção de seu vento é capaz de descongelar, de
maneira não traumática, o gelo que se acumulou em camadas milenares em torno de
nossa individualidade esquecida.
Qualquer um de nós – incluindo você e eu – é
capaz de expressar sua personalidade e maneira única – e por isso bela – de
ser, com a mesma verdade e grandeza com que um Van Gogh, um Nietzsche ou um Tom
Jobim o fizeram. E a respiração pode ser o ovo de Colombo, o meio simples e
óbvio para que realizemos isso.
Respiração é alimento, que pode nutrir o
gelo que nos envolve ou aquilo que foi envolvido por esse gelo: nossa
inteligência. Se estamos inconscientes da respiração, ela alimenta nossa
inconsciência, reforça em nós tudo o que nos inclina à inconsciência. Quando
melhoramos nossa percepção da respiração, alimentamos nossa consciência,
tornamos tão vital a consciência que vinha sufocada, soterrada, que ela não se
contém mais sob as camadas sedimentares de ignorância e descaso que a cercam;
ela começa por abrir frestas e dar sinais de criatividade, até por fim,
irrompê-las e mostrar sua face. Simples assim. Como ovo de Colombo. À frente de
nosso nariz e ao alcance de nossas mãos, o tempo todo, quando quer que
decidamos usá-la.
Respiração é alimento, e, desde bebês, desde
os seios de nossa querida mãe, associamos, muito diretamente, alimento a amor.
Dessa maneira, liberdade para aceitar a respiração é também liberdade para
aceitar o amor, plenitude de respiração é potencialmente plenitude amorosa,
respirar mais é amar mais e respirar menos é amar menos. Respiração não é
apenas sinônimo de consciência, mas também de amor. E, mais uma vez, uma chave
fundamental pode estar guardada na expiração, e não na inspiração, a chave do
amor pode estar em dar, em lugar de receber.
O bebê recebe alimento e amor da mãe, os
dois se tornam dois lados de uma mesma moeda e, nesse momento, o amor está
ligado à inspiração, ao receber. E, talvez daí, desses anos de dependência
tenha ficado congelada a noção de que amor é receber – e o da criança realmente
o é. O amor adulto é de uma qualidade diferente, está mais presente no
exercício da expiração. No dar, que a mãe experimenta ao amamentar. E se ela
não o fizer, seus seios irão doer. Da mesma maneira, se não dermos o amor que
brota espontâneo, como o leite das glândulas mamárias, sentiremos congestão
interna e dor. E, para não senti-la, cultivaremos a inconsciência, pela
diminuição – ou quase supressão – da respiração.
No início da vida somos como sementes de
abacate que precisam de chuva para se desenvolver, quando adultos deveríamos
nos tornar frondosos abacateiros, que dão seus frutos para alimentar inúmeras
outras vidas. Esse é o ciclo da vida; esse é o ciclo da inspiração e expiração.
Se no início da vida, o objeto de amor e nutrição
é o mesmo, a mãe, essa pode se comportar de diversas maneiras. O alimento e o
calor vêm dali, daquele par de seios, mas essa mãe pode amar ou não a o filho,
pode amá-lo mais ou menos. Isso tornará esses seios mais ou menos quentes, mais
ou menos sensíveis, mais ou menos vibrantes, e tornará nossa noção de amor como
sendo abundante ou rarefeito. Se a mãe ama o filho, amamentar se torna uma
experiência de êxtase para ela, seus seios permanecem sensíveis e a criança se
identifica com essa sensibilidade, ela percebe que a mãe está gostando, não
está simplesmente alimentando-a de leite. Mas se a mãe está apenas cumprindo
uma necessidade, se ela está com pressa de sair dali, pensando em outros
interesses, a criança sente essa frieza e se sente não desejada. Ambos os casos
interferem na respiração da criança, na instituição de seu padrão respiratório
inicial, mas interferem principalmente na maneira de inspirar da criança. Sua
expiração permanece, de alguma maneira, mais defendida de interferências, como
uma chave para que, posteriormente, a criança possa mudar esses padrões
iniciais.
A expiração está para a sensibilidade como a
inspiração está para a atividade. Quando a criança tem sua sensibilidade ferida
pela insensibilidade dos adultos que a cercam, ela instintivamente se defende
colocando sua atenção na expiração – por vezes tornando-a bem mais lenta que a
inspiração – e ela cria um “cofre” onde a protege, para todo o sempre. Mas,
muitas vezes, perde a chave, ou se esquece do segredo na vida adulta. A chave
porém, está sempre ali, à frente de seu nariz, na consciência da expiração.
O amor infantil era focado na inspiração e
(sobre)vivia em estado de total dependência; o adulto, por ser muito mais
focado na expiração, tem sempre a possibilidade de existir em plenitude, em
situações propícias ou adversas. Ser mestre da própria lucidez e amorosidade,
começa por se viver consciente da própria expiração.
Fonte: http://pedrotornaghi.com.br/blogger/?page_id=1497