segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mágoa e defesa


Toni Packer- em seu Livro "O Milagre do Agora."

Mágoa e defesa

"Quando há magoa, é possível a energia acumular-se em consciência indivisa - muito, muito quieta, aberta, indefesa, vulnerável? É uma descoberta incrível quando essa consciência tem a oportunidade de operar livremente. Não é necessário defender-se! O que é magoado e defendido é a memória."

Um dos problemas recorrentes de todo ser humano é a mágoa, magoar-se, já ter sido magoado antes, o temor de ser de novo e todas as medidas defensivas que o cérebro e o organismo tomam para protegerem-se de mágoas presentes e futuras.
Nenhum retiro termina sem que questionemos, com paixão e a intensidade: o que fica magoado quando magoamos?
É possível examinarmos todo o processo de ficarmos magoados com um senso de grande premência, exatamente enquanto isso acontece, questionando o que está ocorrendo, permanecendo com ele, permitindo que se elucide revele completamente?
No momento em que somos magoados é possível observação e escuta instantânea?
Contudo, magoar-se continua grandemente inquestionado e, com isto, surgem a defesa e a proteção automáticas contra a mágoa. Existe medo de enfrentar tudo isso diretamente no momento em questão? Ou, às vezes, existe uma de consciência daquilo que está acontecendo? Talvez haja, mas será que é imediatamente seguida pelo pensar e sentir: "Eu não quero estar em contato com toda esta coisa dolorosa”? O temor de enfrentar a mágoa, de viver com magoa, de passar por ela, e o medo de magoar outra pessoa enquanto estivermos enredados em nossa própria mágoa mantém o corpo-mente preso na dor e na dormência, em conflito e numa busca incessante de fugas. Então, neste exato momento, é possível consagrarmos a quantidade de tempo e energia que são necessários para examinar a mágoa?
O cérebro pode dizer “não me sinto magoado neste instante, então, como posso examinar isso?”. Não obstante, normalmente a magoa encontra-se não muito abaixo da superfície. A memória pode evocá-la bem facilmente.
Ao investigá-la, nosso primeiro impulso normalmente encontrar uma explicação para a magoa e uma causa. O cérebro esta sempre buscando explicações para o que aconteceu e por que aconteceu. Já que esta parece ser sua maneira preferida de investigar, é possível deixar que vá em frente, sem maiores atenções para aquilo que esta acontecendo de um modo mais amplo e mais abrangente?
O cérebro não somente anseia por explicações e por encontrar causas, mas também por proteger e defender a imagem que ele construiu do “eu”. Ele protege e defende o “eu” encontrando erros em outra parte. É possível ver isto enquanto esta ocorrendo?
Procurando uma “causa” da mágoa, encontrando uma no passado recente ou remoto, e, então, explicando, justificando, defendendo, censurando, atacando ou retraindo-se numa couraça autoprotetora - tudo isso acontece em pensamento, na fantasia.
O cérebro é capaz de continuar a examinar fitas de vídeo e trilhas sonoras internas por horas, dias ou anos, repisando o que aconteceu, por que aconteceu, e o que poderia ou deveria ter acontecido em vez disso. Dessa maneira ele permanece enredado num circuito de sua dor, emoção, conflito e retração. Tudo isso faz parte da magoa. Estamos juntos nisso? E possível olhar para isso tudo, e não apenas ler a respeito rapidamente?
A consciência de todo o processo consegue abrir caminho através da confusão?
Vamos começar do inicio. Alguém me critica duramente, e isso me magoa imediatamente. Por quê?
Ser criticado evoca todo tipo de pensamentos e sensações sobre mim mesma na presença do outro - constrangimento, humilhação, rejeição, culpa, sentir-se inútil etc. A pessoa sente-se instantaneamente ameaçada, em perigo, e excluída da segurança, aprovação e amor. ( Existem muitos outros sentimentos como raiva e desejo de vingança, mas vamos manter tudo o mais simples possível.) Os pensamentos e as sensações que surgem podem variar de uma pessoa a outra, de um caso a outro, mas eles estão aí, afetando nosso estado total de ser.
Agora, é possível ir mais fundo?
Estamos em contato com magoas, tanto atuais quanto que são acionadas instantaneamente pela memória, não apenas a memória mental, mas também a memória do organismo? Sensações atuais de magoa automaticamente acessam lembranças dolorosas armazenadas no cérebro e em todo o organismo desde a primeira infância. O cérebro e o corpo humanos acumulam e armazenam essas indefinidamente, principalmente de modo inconsciente. Ao ativar lembranças antigas, o corpo sente-se exatamente tão atormentado, assustado e zangado quanto no momento em que esses incidentes aconteceram, anos atrás. A memória evoca tudo isso - é possível experimentar isso diretamente por si mesmo.
Todos nós, sem exceção, fomos magoados muitas vezes quando éramos crianças pequenas, e traços de lembranças dessas magoas e das circunstancias e razões que as acompanharam estão armazenados em todo o nosso organismo. Num momento ou outro, uma mãe ou um pai amorosos não estavam presentes quando eram necessários. Num momento ou outro, fomos mal-interpretados, admoestados, com raiva, advertidos com ameaças, punidos, constrangidos, ridicularizados ou humilhados. Tudo isso pode sequer ter acontecido diretamente conosco: a impressão podo ter advindo de sentir a violência cometida contra outros membros da família ou da comunidade.
Normalmente, nós, adultos, não estamos conscientes do que fazemos quando estamos com raiva, exasperados ou exaustos. Todos nós tivemos reações violentas programada em nosso ser desde tempos imemoriais. Perpetuamos automaticamente aquilo que aprendemos a imitar e que armazenamos na memória desde os tempos mais remotos: o tom e a qualidade da voz, os gestos corporais, a expressão dos olhos, o franzir das sobrancelhas e outras expressões faciais. Tudo isso foi condicionado - aprendido através da imitação de muitas fontes, muito tempo atrás, quando nos mesmos éramos ainda éramos crianças. E possível observar crianças mais velhas repreendendo crianças menores exatamente do mesmo modo como elas foram repreendidas.
Assim, ter sido magoado por uma voz alta e raivosa (que é um trauma para o organismo do bebê), ter sido criticado asperamente. forçado a fazer alguma coisa de um modo doloroso ou humilhante, não apenas por familiares, mas por pessoas poderosas, toda essa magoa está depositada na memória física. E não está meramente depositada, mas é operante.
Mágoas também são registradas como assuntos não resolvidos que constantemente tentam emergir de novo. A reação “Olho por olho, dente por dente” constitui um pro-grama profundamente arraigado em nosso repertório de reações automáticas. Assim, magoar-se e revidar a mágoa são sentimentos profundamente geminados. Eles andam juntos. Porém, o importante não é apenas compreender intelectualmente - dominar a idéia e explicá-la para outra pessoa -, porém observá-la diretamente conforme ela dentro da gente. Caso isso não aconteça, nada mudará fundamentalmente. Continuaremos a magoar e ficar magoados.
Estamos examinando a mágoa e percebemos que houve mágoa desde os primeiros dias de nossas vidas. Podemos não nos lembrar conscientemente dos incidentes específicos, mas o fato é que a intensidade da mágoa atual reverbera os registros de magoas passadas. E possível que isso a isso alcance a consciência?
Pode-se ficar espantado, em certas ocasiões, de ficar terrivelmente magoado com um incidente insignificante, mas a história inteira de mágoas passadas reverbera na mágoa atual. Manifesta-se agora mesmo em todas as sensações, pensamentos, emoções, medos, dores e tensões. E possível ver imediatamente, no momento em que está acontecendo? É possível perceber o impacto caótico que um incidente insignificante tem neste mesmo instante? Alguém me critica duramente, e eu acolho a critica como uma condenação final. Para uma criança indefesa, o contato com pessoa violenta e punidora significava algum tipo de condenação, e todas as reações de pânico e defesa que surgiam, eram instantaneamente registradas nas células e nos tecidos do corpo. Um incidente acontecendo agora e que se conecte com outro, ocorrido no passado, mobiliza instantaneamente todas essas conexões.
E possível haver consciência da totalidade desse processo quando se é atingido? Não fugir da magoa, pensar sobre ela, retrair-se do medo e da dor, mas permitir que a situação se revele, com todos os seus sintomas físicos, sensações, tensões e pressões, pelo que ela é? Não escapar dela, mas fazer uma pausa instantânea para sentir, ver e escutar?
Isso só é possível quando não houver fuga para o complexo sistema de defesa que se desenvolveu com o tempo para nos proteger, ou melhor, para proteger a ideia de si próprio. O organismo em si não esta ameaçado quando somos criticados severamente, não é? Então, o que é ameaçado? E possível questionar isso instantaneamente? Onde esta o perigo? O que protegemos? O problema é auto proteção? E possível que a energia da consciência derrube os muros da defesa?
Conseguimos chegar ao âmago daquilo que fica magoado quando ficamos magoados?
Defesa significa isolamento, a ausência de relacionamento. Não se pode estar bem-defendido e ao mesmo tempo estar sensível, estar em contato intimo e vulnerável com tudo. Isso está muito claro, não é? Isso se aplica tanto ao ser humano individual quanto a totalidade de uma nação.
Não sabemos, por toda a nossa experiência passada, que não há problema em estar indefeso e que podemos sobreviver a isso. Não sabemos isso. Tudo o que sempre fizemos, observamos e aprendemos da experiência foi defender-nos, não somente num nível físico, mas também psicológico. (Não estamos questionando a necessidade de proteção inteligente do organismo físico. Estamos questionando a necessidade de defesa psicológica.) Não sabemos existir sem essa defesa. Quando éramos bebês indefesas, fomos magoados psicologicamente, e começaram a desenvolver-se de forma automática. Atualmente, vivemos essa gravação como uma fita que passa de modo continuo - magoando sem fim ou ficando incessíveis para evitar a dor. Aparentemente, o cérebro não diferencia ou não pode diferenciar entre proteção inteligente do organismo e proteção das lembranças acumuladas de si mesmo. Ele mobiliza-se para proteger lembranças da mesma forma como o faz para proteger o corpo de danos físicos.
Então, o que é indefensabilidade?
Quando há magoa, é possível a energia acumular-se em indivisa - muito, muito quieta, aberta, indefesa, Vulnerável? É uma descoberta incrível, quando essa consciência tem a oportunidade de operar livremente. Não é necessário defender-se! O que é magoado e defendido é a memória! É possível ouvir criticas severas com completa atenção, ver e sentir o que fica magoado ou esta prestes a ficar magoado e não se defender.
É possível chegar a esse ponto além de qualquer explicação intelectual? Trata-se realmente de ser sem defesa. Trata-se de morrer para a urgência profundamente arraigada de salvar o “eu”, deixando de lado, sem esforço ou propósito, a defesa que preme para vir à tona por puro hábito. A defensiva não precisa continuar - este é o milagre!
Pode passar a sensação de vulnerabilidade. Nunca aconteceu antes, porque a defesa é tão habitual, tão confiável, embora seja tão isoladora e dolorosa em suas conseqüências. Contudo, nada de novo pode acontecer enquanto estivermos enredados em defesa e proteção.
Então, examinando-a, pensando sobre ela, é possível haver, no momento da magoa, a centelha de atenção que desconecta e mantém em suspenso nosso passado automático? Arriscar-se em não saber como vai acabar, mas não se defender. Não desenvolver uma nova técnica - não estamos falando sobre uma técnica. Técnica é a defesa. Em vez isso, trata-se apenas de ser vulnerável sem saber o resultado.
Não há nada para defender. Quando isso se torna tão claro quanto um céu sem nuvem, a vida surge sem a dureza e o atrito das couraças. Somos seres vivos, quentes, amorosos, capazes de ouvir uns aos outros livremente e tocarmos um aos outros profundamente. Estar em contato completo uns com os outros significa a ausência de toda divisão entre “eu” e “você”. É a ausência da mágoa e da defesa. E liberdade.