Era uma vez uma coisa que ficava numa gaveta bem arrumadinha.
Ela sabia que o nome dela era “coisa” porque quando alguém não sabe o nome de alguma coisa, chama aquela coisa de coisa. E foi assim que ela havia sido chamada por alguém. Seu nome era coisa porque ela servia para nomear alguma coisa cujo nome havia sido esquecido.
O único valor que aquela coisa sabia ter era este: Sabia que ela servia para alguma coisa, mesmo porque, se ela estava lá naquela gaveta toda arrumadinha, não era coisa de se jogar fora.
Um dia alguém procurou alguma coisa bem específica naquela gaveta e bagunçou tudo ali sem achar nada. Foi aí que coisa que servia para alguma coisa se deu conta que ela não era uma coisa bem específica. Mas, por outro lado, sabendo-se inespecífica, viu-se com muitas mais possibilidades. Foi então que se encontrou diante de uma outra coisinha bem pequena, que não servia mais para nada. Aquela coisinha era tão insignificante, que ninguém achou sequer importante, jogá-la fora.
Talvez, porque a coisa estava sentindo-se insegura por ter perdido seu lugar dentro de uma ordem bem conhecida, mas também, sentindo-se bem mais livre por saber-se inespecífica, ela olhou para aquela coisinha insignificante e lhe disse: “Coisinha, quero ser sua amiga”.
A tal coisinha não iria permitir que aquela coisa, que ainda servia para alguma coisa, valesse mais do que ela mesma e, aproveitando a oportunidade de sentir-se um pouquinho mais importante, respondeu, olhando a coisa de cima para baixo: “Para mim você é uma coisa que não vale nada.”
No mesmo instante, a coisa que sentia que servia para alguma coisa sentiu-se ainda mais confusa e perdeu o único valor que pensava ter, ao acreditar que ela era uma coisa que não valia nada. E ficou lá, uma coisa entre coisas, a mais perdida dentro daquela recém bagunçada gaveta.
Até que um dia alguém abriu a gaveta e a luz do sol, de repente, entrou nela. E a coisa que não valia nada escutou alguém dizendo: “Achei! Nada acontece por acaso!”
A coisa então disse para si mesma. Estou aqui com esta infeliz sensação de não valer “nada” e acontece um outro “nada” por um feliz acaso!
Ela achou aquela coincidência tão significativa que começou a questionar aquele evento no qual se sentiu incluída pelo tal do acaso. Aí então, também aconteceu por acaso uma daquelas coisas inexplicáveis, que só acontecem quando um “nada” profundamente sentido dentro de si mesmo se encontra com outro “nada” percebido lá fora de si mesmo: A coisa, do nada, se fez uma pergunta totalmente inesperada, até para ela mesma: “Quem sou eu afinal?”
No momento em que ela conjugou o verbo ser seguido de uma interrogação, a coisa-em-si-mesma transcendeu o seu sentido de valor próprio, que agora, já não fazia mais nenhum sentido! Valer ou não valer alguma coisa, não era sequer uma questão digna de ser jamais cogitada. Agora, ao perguntar-se pela primeira vez “quem” ela era, verificou que questionava, inclusive, o que eram todas as coisas, pois elas já não eram mais significativamente diferentes umas das outras! Dentro ou fora de todas as gavetas, independente do fato delas estarem arrumadas ou bagunçadas, o significado de todas as coisas era, surpreendentemente, o mesmo. Ela podia ainda não saber que coisa ela era, mas, pelo menos, havia se deparado com um “quem” dentro dela mesma. Agora ela já não se sentia tão perdida em sua confusão íntima. Por outro lado, ela estava tremendamente perplexa!
Ela pensou: ser uma coisa entre coisas, com maior ou menor valor já não importa, pois é o “quem” que atribui maior ou menor valor a uma coisa ou a outra. Mesmo não sabendo “quem” eu sou, verifico que sou “quem” atribui valor à coisa que eu mesma sou. Agora também posso inferir que eu e todas as coisas somos “nada”, porque este “nada” aconteceu e continua a acontecer por acaso e, por este mesmo acaso, eu sou “quem” estou filosofando desde este caos perdido aqui e agora no espaço-temporal. Agora, tanto faz se a gaveta está bagunçada ou arrumadinha e que lugar, ordenado ou caótico, eu ocupo dentro dela. Tanto faz se a coisinha quer ou não quer ser minha amiga. Tanto faz se eu sirvo ou não sirvo para nomear alguma coisa cujo verdadeiro significado permanece esquecido. Tanto faz que, ao final, o nome, a função e o significado esquecidos da coisa que eu sou me sejam revelados.
O que importa é “quem” acontece por acaso!
Então, porque uma coisa sempre leva a outra coisa - e logo antes que a escuridão a engolisse no instante que a gaveta viesse a ser fechada - ela, assim do nada, se deparou com outra grande pergunta:
“Quem está acima de todas as coisas e as faz acontecer assim, a partir do nada?”
Moral de história:
Não existe “nada”
Que não sirva para alguma “coisa”
Dentro da nossa gaveta,
Aberta ou fechada,
Arrumadinha ou bagunçada.
Sergio Condé