segunda-feira, 23 de julho de 2018

Bom será!



Meu estimado amigo! Descanse em paz! Você também me ensinou muito! Um grande poeta, amigo e um exímio  amante... amante da vida, da natureza, dos bons drinks, das boas gargalhadas, da rebeldia... você não gostava de dormir, achava que era perda de tempo e amava mentes brilhantes... agradeço a oportunidade de ter convivido com você, só te dou um puxão de orelha: você me enganou direitinho, pois me afirmou categoricamente que estava tudo bem...

Esse foi o nosso último contato... sua voz no poema Solidão: https://youtu.be/h5mlBc8CzQY

Bom será

Meu irmão Lysias tinha uma cachoeira. Um sítio verdejante e uma água que cai da maior altura, espalhando uma beleza diáfana em meio ao paredão de pedras. Depois, forma um remanso breve antes de seguir seu destino. O lugar chama Bom Será. Sábado passado, ele reuniu as últimas forças, andou pelo seu refúgio e depois olhou longamente as águas que caíam. Era uma despedida.

Eu ainda tento entender que força da natureza era o meu irmão Lysias, o nono dos doze filhos dos meus pais. Muita gente se lembrou durante o velório, na segunda, do dia em que, aos oito anos, ele não quis pentear o cabelo. Todo mundo pode querer em determinado momento ficar despenteado, mas ninguém terá a força da rebeldia com a qual ele se jogou contra essa ordem, como se fosse a batalha final. Minha irmã avisou que eu vigiasse o Lysias. Ele só poderia sair do castigo se penteasse o cabelo.

– Não vou pentear o cabelo! — gritou ele do seu castigo.

Fiquei sozinha com ele, enquanto as mais velhas foram para a universidade. Era num apartamento em Belo Horizonte, onde elas moravam para estudar, e tínhamos ido nós dois passar as férias. Ele repetiu por horas aquela mesma frase. Tentei demovê-lo, acalmá-lo, convencê-lo, distraí-lo. Nada. A frase foi repetida por horas. Ele comeu repetindo a mesma afirmação, entre garfadas. E ao fim da tarde, já afônico, insistia que não pentearia o cabelo. Entendemos então que a vontade do Lysias era inamovível. Seus cabelos dormiram lindamente desalinhados e, no dia seguinte, ninguém mais se atreveu a dar ordens naquele penteado.

Ele fez assim com o câncer agressivo que atacou seu corpo há dez meses, quando não havia ainda completado 56 anos. Lysias se tratou, fez tudo o que os médicos mandaram, mas jamais cedeu. Foi, ao longo da doença, animando os que o amam, fazendo piadas, espalhando e acolhendo afetos. Pedia que fossem visitá-lo e, quando tinha forças, recebia a visita no fogão, preparando alguma iguaria. Quando a dor era grande demais, ele se deitava. A qualquer sinal de melhora, ele levantava e tocava a vida, como se houvesse muito tempo restante.

– Ele não se verga — disse meu irmão Cláudio, em espanto.

Era como se fosse ainda o menino convicto da sua razão e soberania capilar, dizendo: “não vou me entregar ao câncer”. Foi tão imensa a sua força que nos enganou. Achávamos que ele permaneceria assim, superando as dores, comemorando as pequenas melhoras de cada dia, teimando com a doença. Quando ele ficou inconsciente no domingo, nós entendemos que ele dormia. Era apenas um breve descanso do indomável guerreiro. Na segunda, a notícia se espalhou como uma devastadora verdade por toda a família. Lysias não há mais. E agora?

Os dias seguintes foram de entender a dimensão do meu irmão. Um ponto de união entre pessoas que a vida dispersou, um centro de distribuição de amores e carinhos, piadas e poesias. Os dias foram de olhar o enorme vazio que se abriu. Nós ainda não achamos a outra margem.

Lysias viveu intensamente. Pai antes dos 20, avô aos 36, se dedicou a cada papel com a determinação de um combatente. Tão curta a vida vivida até os 56, tão cheia de acontecimentos.

Bom será se cada um que recebeu tanto amor entender pelo menos algumas das suas lições. Eu consegui apenas um entendimento imperfeito. Achei que ele estava, com toda aquela bravura, bom humor e afeto, nos ensinando a fazer a derradeira caminhada. Só dias depois é que compreendi que a teimosia em ficar em pé e inteiro era para nos ensinar  a viver.  Era aviso de que a vida vale a pena até o último instante. Que enquanto houver vida ela é plena. Que não devemos pentear os cabelos se não quisermos, nem desistir da vontade. E é preciso reunir as forças, mesmo que últimas, e olhar para as águas que descem com força até o remanso. E então se despedir como quem dorme.

Bom seria entender tudo o que o Lysias nos ensinou. Bom seria provar todos os sabores da vida, em volta de um fogão de lenha, numa panela feita de roda de arado que ele mandou fazer. Bom seria beber mais um copo do vinho com o qual brindamos quando ele preparou para mim a torta capixaba, que aprendeu a fazer porque é meu prato favorito. Bom seria olhar com o irmão, em silêncio, a queda das águas. Bom seria. Bom será. Bom seria. Bom será. Para sempre será bom ter tido um irmão assim.

Publicada no blog do Matheus Leitão: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2018/07/21/bom-sera.ghtml