...Mas,
depois de algum tempo, novas formas de maldades apareciam outra vez.
Até
que um dia todos se cansaram disso e disseram:
-
“Não vamos incomodar-nos mais com essa questão de governo. Vamos parar de
perder tempo tentando fazer com que as pessoas sejam boas. Vamos conviver com a
sua maldade”.
E,
por estranho que pareças, essa decisão pareceu dissipar as nuvens de
preocupação que havia muito tempo pairavam sobre aquele povo. Um espírito novo
e juvenil pareceu invadir cada um, e todos se puseram a trabalhar para colocar
em prática o novo plano.
O
primeiro resultado foi que cada cidadão teve que ficar mais paciente. Quando um
ato mau era praticado contra alguém, ao invés de, como antes, querer vingança
ou exigir que o autor da maldade corrigisse seu comportamento, a pessoa agora
tentava ser paciente e cobrir a ferida aberta com um sorriso. Ninguém
mencionava pessoas que desrespeitavam a lei, nem atos maldosos, embora as leis
continuassem sendo desrespeitadas, e as pessoas fizessem maldades. Mas, embora
o mal fosse feito, ninguém pensava no homem, ou na mulher, ou na criança que o
havia feito, porque cada um que era ferido era paciente e esquecia quem havia
feito a ofensa. É claro que havia a dor, e todos queriam terminar com ela. Mas
pensar em quem havia causado a dor não adiantava. Por isso, quando um homem era
prejudicado, ele logo esquecia quem o prejudicaria. Todos, agora, estavam
ficando pacientes.
Então,
pouco a pouco, as pessoas começaram a fazer uma misteriosa descoberta. Viram
que se alguém havia feito uma maldade contra você – por exemplo – fora você
que, na verdade, despertara a maldade dentro do outro. No começo a idéia parecia
inaceitável, e muita gente ficou chocada ao pensar nela pela primeira vez. Mas,
lentamente, as pessoas foram descobrindo que era verdade. Na segunda-feira o
rei começou a sentir que ele despertava em seus súditos um tipo especial de
maldade – “Mas isto é horrível “, diziam todos.
E,
no entanto, era verdade. Então cada homem e cada mulher começaram a ser
humildes de fato; agora não era mais uma questão de forçar alguém a ser bom –
mas, sim, de deixa-lo em paz.
II - A Criança
Encantada
Ã
medida que cada um fazia seu próprio treinamento em paciência, notava um fato
novo e estranho em si mesmo. A pessoa ficava interessada no que as crianças
andavam fazendo. Enquanto a nuvem de preocupação consigo mesmo se dissipava, o
cidadão ia ficando fascinado pela vida das crianças. Os gestos e os sorrisos
das crianças pareciam trazer uma lembrança de algo doce e bonito, que a alma
havia conhecido um dia, mas esquecera. A dor da vida, que o cidadão carregava
consigo todo o tempo, parecia ficar um pouco esquecida, enquanto ele olhava as
crianças brincando. Pensar, agora, era um pouco menos, confuso. As pessoas
pareciam mais rápidas em compreender as coisas com seu próprio pensamento –
tudo porque haviam começado a amar melhor as crianças. Roído o mundo falava da
alegria de amar as crianças, porque isso aumentava a felicidade da vida. No
entanto, ninguém havia percebido que amar as crianças era começar a obter a
parte mais básica da sabedoria. Mas por que motivo crianças e sabedoria estavam
intimamente conectadas? Esse mistério ninguém sabia explicar.
Foi
então que um fato novo, e mais assombroso, começou a ser descoberto por aqueles
que, desenvolvendo a paciência, aproximavam-se mais e mais da vidas crianças.
Quando eles olhavam uma criança que brincava, e recebiam o sorriso gracioso e
confiante dela, começavam a notar que a contraparte daquela criança graciosa
estava em si mesmos. Por mais velho que alguém pudesse ser, por mais ferido e
cansado pela batalha da vida, sempre cada criança parecia acordar uma
contraparte em algum lugar no intimo da pessoa. Em pouco tempo as pessoas
passaram a ter necessidade ver crianças; de uma maneira totalmente inesperada,
elas traziam pureza ao coração e à mente. A vida – que havia perdido com o
passar do tempo seus tons delicados – parecia recuperar as suas tonalidades
antigas e inesquecíveis, e parecia ir mais fundo, até o âmago da pessoa, mesmo
que o corpo já estivesse gasto que o corpo já estivesse gasto e fraco. Homens e
mulheres compreendiam, emocionados, que o que eles haviam considerado
completamente perdido estava voltando à vida outra vez.
Com
o crescimento do amor pelas crianças, cada um começou a ter uma nova
compreensão de si mesmo. Não havia uma só pessoa naquele povo que não tivesse
feito muitas coisas más. Todo um conjunto de coisas feias acompanhavam cada um
como uma sombra. Antes era sempre muito doloroso olhar para trás e ver as
formas feias dos erros que cada um fazia quando, levado pelo desejo de viver,
lutava para beber na fonte da satisfação. Mas agora, quando ele olhava para
trás e via a lista de maldades cometidas, sentia, com intensidade crescente,
que aquelas formas feias não eram suas. Porque, desde que começara a amar as
crianças, cada pessoa descobria que uma parte sua era como uma criança pura e
inocente; a cada dia ficava mais real, mais intenso e claro na consciência do
cidadão que havia uma parte dele mesmo que nunca havia sido contaminada pelo
mal que outra parte sua fazia.
Com
a descoberta dentro de cada um dessa criança encantada, pura e sem mácula,
surgia uma curiosa dissociação do passado. Antes, quando um homem olhava para
trás e via seus maus pensamentos e más ações, costumava dizer: “Aquele era eu”.
Mas agora, depois da sua descoberta da vida infantil, ele dizia: “Aquele não
era eu “. Ele sentia profundamente que aquelas formas feias, que o cobriam como
máscaras quando fazia coisas erradas, não tinham em si nada do seu real. Com o
é que uma criança encantada poderia ter algo em comum com a luxuria e ganância,
com ódio e orgulho? Sem dúvida era ele, e não outro, que colocava em movimento
uma força má após outra. No entanto, ele agora sentia que não havia sido ele
mesmo que transigira assim com o mal.
Essa
descoberta por parte de cada um, de que não era o seu verdadeiro eu que havia
causado o mal, libertou a mente de um grande peso. O pecado passou a ser agora
apenas uma lembrança e não uma mancha na brancura da alma. As falhas do passado
não anulavam mais a confiança de cada um em si mesmo. Era um sentimento
maravilhoso desligar-se dos eus antigos com seus desesperos e culpas. Agora era
possível contemplar qualquer tarefa elevada sem que alguém viesse dizer que ela
estava fora do alcance. O espírito que negava e duvidava foi, afinal, posto de
lado, junto com o feio passado.
Depois
da descoberta do que cada pessoa realmente era, ficou óbvio que todos haviam
errado ao fazer julgamentos. O mundo sempre havia julgado as pessoas mais pelos
seus erros do que pelos seus acertos; nunca havia dado crédito às boas
intenções, quando alguém tentava fazer o bem mas fazia o mal. Cada vizinho
havia-se lançado sobre o não-eu que estava fazendo coisas erradas e gritando: -
“Castigo para ele, o pecador! “A imagem do verdadeiro eu do cidadão, que o seu
vizinho havia visto algumas vezes, desaparecia da mente deste quando ele olhava
o não-eu; ele contemplava algo falso, mas o classificava com o rótulo de
realidade. Assim, não só a condenação era injusta, mas o remédio era, também,
completamente ineficiente. As pessoas eram punidas todos os dias, mas isso não
transformava o mal em algo repelente que elas renunciassem a ele, nem fazia do
bem algo tão atraente que as pessoas sentissem uma forte necessidade dele. As
punições faziam sofrer, mas nunca curavam.
À
medida que cada um começava a perceber como o mundo o havia compreendido e
julgado de um modo fundamentalmente errado, faltava um passo apenas para
compreender que ele próprio havia compreendido mal as outras pessoas. Os outros
também deviam ter um não-eu quando haviam feito a maldade contra a qual todos
gritavam com raiva. Seria possível que aquele não-eu na outra pessoa tivesse
algo em comum com uma criança encantada? Seria possível que essa criança
encantada estivesse nele agora?