O psiquiatra chileno diz que investir numa
didática afetiva é a saída para estimular o autoconhecimento dos alunos e
formar seres autônomos e saudáveis
A
DIDÁTICA DO AFETO
O psiquiatra Claudio Naranjo. A educação é a
única forma de mudar o mundo (Foto: Divulgação)
O psiquiatra chileno Claudio
Naranjo tem um currículo invejável. Formou-se em medicina na Universidade
do Chile, especializou-se em psiquiatria em Harvard e virou pesquisador e
professor da Universidade de Berkeley, ambas nos EUA. Desenvolveu teorias importantes
sobre tipos de personalidade e comportamentos sociais. Trabalhou ao lado de
renomados pesquisadores, como os americanos David McClelland e Frank Barron.
Publicou 19 títulos. Sua trajetória pode ser classificada como irrepreensível
pelo mais ortodoxo dos avaliadores. Ele é, inclusive, um dos indicados ao Nobel
da Paz deste ano. É comum, no entanto, que Naranjo seja chamado, em tom
pejorativo, de esotérico e bicho grilo. Há mais de três décadas, ele e a
fundação que leva seu nome pregam que os educadores devem ser mais amorosos,
afetivos e acolhedores. Ele defende que essa é a forma mais eficaz de ajudar
todos os alunos – não só os melhores – a efetivamente aprender “e assim mudar o
mundo”, como ele diz. Claudio Naranjo esteve no Brasil para participar do
evento sobre educação básica Encontro de Educadores.
ÉPOCA
– O senhor é psiquiatra e desenvolveu teorias importantes em estudos de
personalidade. Hoje trabalha exclusivamente com educação. Por que resolveu se
dedicar a esse tema?
Claudio
Naranjo – Meu interesse se voltou para a educação porque
me interesso pelo estado do mundo. Se queremos mudar o mundo, temos de investir
em educação. Não mudaremos a economia, porque ela representa o poder que quer
manter tudo como está. Não mudaremos o mundo militar. Também não mudaremos o
mundo por meio da diplomacia, como querem as Nações Unidas – sem êxito. Para
ter um mundo melhor, temos de mudar a consciência humana. Por isso me interesso
pela educação. É mais fácil mudar a consciência dos mais jovens.
ÉPOCA
– Quais os problemas do modelo educacional atual na opinião do senhor?
Naranjo – Temos
um sistema que instrui e usa de forma fraudulenta a palavra educação para
designar o que é apenas a transmissão de informações. É um programa que rouba a
infância e a juventude das pessoas, ocupando-as com um conteúdo pesado, transmitido
de maneira catedrática e inadequada. O aluno passa horas ouvindo, inerte, como
funciona o intestino de um animal, como é a flora num local distante e os nomes
dos afluentes de um grande rio. É uma aberração ocupar todo o tempo da criança
com informações tão distantes dela, enquanto há tanto conteúdo dentro dela que
pode ser usado para que ela se desenvolva. Como esse monte de informações pode
ser mais importante que o autoconhecimento de cada um? O nome educação é usado
para designar algo que se aproxima de uma lavagem cerebral. É um sistema que
quer um rebanho para robotizar. A criança é preparada, por anos, para funcionar
num sistema alienante, e não para desenvolver suas potencialidades
intelectuais, amorosas, naturais e espontâneas.
ÉPOCA
– Como é possível mudar esse modelo?
Naranjo – Podemos
conceber uma educação para a consciência, para o desenvolvimento da mente. Na
fundação, criamos um método para a formação de educadores baseado em mais de 40
anos de pesquisas. O objetivo é preparar os professores para que eles se
aproximem dos alunos de forma mais afetiva e amorosa, para que sejam capazes de
conduzir as crianças ao desenvolvimento do autoconhecimento, respeitando suas
características pessoais. Comprovamos por meio de pesquisas que esse é o
caminho para formar pessoas mais benévolas, solidárias e compassivas. Hoje a
educação é despótica e repressiva. É como se educar fosse dizer faça isso e
faça aquilo. O treinamento que criamos está entre os programas reconhecidos
pelo Fórum Mundial da Educação, do qual faço parte. Já estive com ministros da
Educação de dezenas de países para divulgar a importância dessa abordagem.
ÉPOCA
– E qual foi a recepção?
Naranjo
– A
palavra amor não tem muita aceitação no mundo da educação. Na poesia, talvez.
Na religião, talvez. Mas não na educação. O tema inteligência emocional é um
pouco mais disseminado. É usado para que os jovens tomem consciência de suas
emoções. É bom que exista para começar, mas não tem um impacto transformador. A
inteligência emocional é aceita porque tem o nome inteligência no meio. Tudo o
que é intelectual interessa. Não se dá importância ao emocional. Esse aspecto é
tratado com preconceito. É um absurdo, porque, quando implementamos uma
didática afetuosa, o aluno aprende mais facilmente qualquer conteúdo. Os
ministros da Educação me recebem muito bem. Eles concordam com meu ponto de
vista, mas na prática não fazem nada. Pode ser que isso ocorra por causa da
própria inércia do sistema. O ministro é como um visitante que passa pelos
ministérios e consegue apenas resolver o que é urgente. Ele mesmo não
estabelece prioridades. Estou mais esperançoso com o novo ministro da Educação
de vocês (Renato Janine Ribeiro). Ele me convidou para jantar, para falarmos
sobre minhas ideias. É a primeira vez que a iniciativa parte do lado do governo.
Ele é um filósofo, pode fazer alguma diferença.
"Quando há amor na forma de ensinar, o
aluno aprende mais facilmente qualquer conteúdo"
ÉPOCA
– Para quem decidiu ser professor, não seria natural sentir amor, compaixão e
vontade de cuidar do aluno?
Naranjo – Uma
vez dei uma aula a um grupo de estudantes de pedagogia na Universidade de
Brasília. Fiquei muito decepcionado com a falta de interesse. Vendo minha
expressão, o coordenador me disse: “Compreenda que eles não escolheram ser
educadores. Alguns prefeririam ser motorista de táxi, mas decidiram educar
porque ganham um pouco mais e têm um pouco mais de segurança. Estão aqui porque
não tiveram condições de se preparar para ser advogados ou engenheiros ou outra
profissão que almejassem”. Isso acontece muito em locais em que a educação não
é realmente valorizada. Quem chega à escola de educação são os que têm menos
talento e menos competência. Não se pode esperar que tenham a vocação
pedagógica, de transmitir valores, cuidar e acolher.
ÉPOCA
– O senhor diz que o sistema de educação atual desperdiça talentos,
rotulando-os com transtornos e distúrbios. Pode explicar melhor esse ponto?
Naranjo – Humberto
Maturana, cientista chileno, me contou que a membrana celular não deixa entrar
aquilo que ela não precisa. A célula tem um modelo em seus genes e sabe o que
necessita para construir-se. Um eletrólito que não lhe servirá não será
absorvido. Podemos usar essa metáfora para a educação. As perturbações da
educação são uma resposta sã a uma educação insana. As crianças são tachadas
como doentes com distúrbios de atenção e de aprendizado, mas em muitos casos
trata-se de uma negação sã da mente da criança de não querer aprender o
irrelevante. Nossos estudantes não querem que lhe metam coisas na cabeça. O
papel do educador é levá-lo a descobrir, refletir, debater e constatar. Para
isso, é essencial estimular o autoconhecimento, respeitando as características
de cada um. Tudo é mais efetivo quando a criança entende o que faz mais sentido
para ela.
ÉPOCA
– Por que a educação caminhou para esse modelo?
Naranjo – Isso
surgiu no começo da era industrial, como parte da necessidade de formar uma
força de trabalho obediente. Foi uma traição ao ideal do pai do capitalismo,
Adam Smith, que escreveu A riqueza das nações. Ele era professor de filosofia
moral e se interessava muito pelo ser humano. Previu que o sistema criaria uma
classe de pessoas dedicadas todos os dias a fazer só um movimento de trabalho,
a classe de trabalhadores. Previu que essa repetição produziria a deterioração
de suas mentes e advertiu que seria vital dar a eles uma educação que lhes
permitisse se desenvolver, como uma forma de evitar a maquinização completa
dessas pessoas. Sua mensagem foi ignorada. Desde então, a educação funciona
como um grande sistema de seleção empresarial. É usada para que o estudante
passe em exames, consiga boas notas, títulos e bons empregos. É uma distorção
do papel essencial que a educação deveria ter.
ÉPOCA
– Há algo que os pais possam fazer?
Naranjo
– Muitos
pais só querem que seus filhos sigam bem na escola e ganhem dinheiro. Acho que
os pais podem começar a refletir sobre o fato de que a educação não pode se
ocupar só do intelecto, mas deve formar pessoas mais solidárias, sensíveis ao
outro, com o lado materno da natureza menos eclipsado pelo aspecto paterno violento
e exigente. A Unesco define educar como ensinar a criança a ser. As
Constituições dos países, em geral, asseguram a liberdade de expressão aos
adultos, mas não falam das crianças. São elas que mais necessitam dessa
liberdade para se desenvolver como pessoas sãs, capazes de saber o que sentem e
de se expressar. Se os pais se derem conta disso, teremos uma grande ajuda.
Eles têm muito poder de mudança.