quarta-feira, 25 de abril de 2012

O homem do rio



Antes de podermos entender o que o homem da história de La Llorona fez ao poluir o rio, precisamos ver como o que ele representa deve ser um constructo positivo na psique da mulher. Na definição junguiana clássica, o animus é a força da alma nas mulheres e é considerado masculino. No entanto, muitas psicanalistas, entre as quais me incluo, através de suas próprias observações, chegaram a uma conclusão contrária ao ponto de vista clássico e afirmam, em vez disso, que a fonte de revitalização da mulher não é masculina e alheia a ela, mas feminina e bem conhecida.
Seja como for, creio que o conceito masculino do animus tenha ampla aplicação. Existe uma forte correlação entre as mulheres que têm medo de criar, de manifestar suas idéias ao mundo, e as imagens de homens feridos ou que ferem nos seus sonhos. Por outro lado, os sonhos das mulheres com boa capacidade de manifestação externa muitas vezes apresentam uma forte figura masculina que aparece com regularidade sob diversos disfarces.
O animus pode ser compreendido melhor como uma força que ajuda as mulheres a agir em sua própria defesa no mundo objetivo. O animus ajuda a mulher a expor seus pensamentos e sentimentos íntimos e específicos de um modo concreto em termos emocionais, sexuais, financeiros, criativos e outros — em vez de expô-los numa imagem que se modele de acordo com um desenvolvimento masculino padronizado numa determinada cultura.
As figuras masculinas nos sonhos das mulheres parecem indicar que o animus não é a alma da mulher, mas que pertence a ela, provém dela, é uma "ponte" essencial. Ele possui capacidades fantásticas que o fazem chegar à altura do trabalho como um portador e um intermediário. Ele é como um negociante da alma.
Ele importa e exporta bens e conhecimentos. Ele escolhe o melhor entre o que é oferecido, negocia o melhor preço, faz o acompanhamento e completa a transação.
Outro meio de se interpretar essa imagem consiste em considerar a Mulher Selvagem, o Self da alma, como o artista, e o animus, como o braço do artista. A Mulher Selvagem é o motorista; o animus acelera o veículo. Ela compõe a canção; ele escreve a partitura. Ela imagina; ele dá conselhos. Sem ele, a peça fica escrita na nossa imaginação, mas nunca é escrita e nunca é representada. Sem ele, o palco pode estar repleto, mas as cortinas nunca se abrem e a portaria permanece sem iluminação.
Se quisermos traduzir o animus saudável por uma metáfora em espanhol, ele seria el agrimensor, o que conhece a configuração do terreno e, com seus instrumentos, mede a distância entre dois pontos. Ele define cantos e estabelece limites. Podemos, também, chamá-lo de el jugador, aquele que estuda e sabe como e onde colocar os marcos para ganhar ou para vencer. Esses são alguns dos aspectos mais importantes de um animus robusto.
Portanto, o animus trafega pela estrada entre dois territórios e às vezes entre três: o mundo subterrâneo, o mundo interior e o mundo exterior. Todas as idéias e sentimentos da mulher são amontoados e transportados de um ponto a outro — nas duas direções — pelo animus, que tem uma afinidade com todos os mundos. Ele traz idéias de "lá de fora" de volta para dentro dela e transfere idéias do Self da alma pela ponte para a fruição e "para o mercado". Sem o construtor e o zelador dessa ponte, a vida interior da mulher não pode se manifestar com determinação no mundo objetivo.
Não é preciso chamá-lo de animus; dêem-lhe o nome que preferirem. No entanto, compreendam também que existe atualmente dentro da cultura feminina uma suspeita quanto ao masculino, um medo de "precisar do masculino". Isso tem como origem os traumas que mal começam a se curar provocados pela família e pela cultura em tempos passados, quando as mulheres eram tratadas como servas, não como indivíduos de identidade própria. Ainda está recente na memória da Mulher Selvagem que houve um tempo em que as mulheres talentosas eram descartadas como lixo, em que uma mulher não podia ter uma idéia a não ser que em segredo a plantasse num homem, que então a apresentava ao mundo lá fora como se fosse exclusivamente sua.
Recentemente, porém, creio que não podemos ignorar nenhuma metáfora que nos ajude a ver e a ser. Eu não confiaria numa paleta na qual faltasse o vermelho, o azul, o amarelo, o branco ou o preto. Vocês também não confiariam. O animus é uma cor primária na paleta da psique feminina.
Portanto, em vez de ser a natureza da alma da mulher, o animus, ou natureza contra-sexual da mulher, é uma profunda inteligência psíquica com capacidade para agir, que viaja de um lado para o outro entre os mundos. Essa força tem a capacidade de expressar e encenar os desejos do ego, de executar os impulsos e idéias da alma, de despertar a criatividade da mulher de uma forma manifesta e concreta. O aspecto principal do desenvolvimento do animus é a real manifestação de pensamentos, impulsos e idéias muito particulares.
Além do mais, o animus é um elemento da psique da mulher que precisa ser exercitado, que precisa treinar com regularidade, a fim de ser capaz de agir. Se ele for negligenciado na vida psíquica da mulher, irá se atrofiar, exatamente como um músculo que permaneceu inerte por muito tempo.
Embora algumas mulheres levantem a hipótese de que uma natureza de mulher-guerreira, a natureza de amazona, a da caçadora, possa suplantar esse elemento "masculino-dentro-do-feminino", para mim existem muitas camadas e nuanças da natureza masculina, como por exemplo um certo tipo de criação de normas, de decretação de leis, de estabelecimento de fronteiras, em termos intelectuais, que é extremamente valioso para as mulheres que vivem nos nossos dias.
Esses atributos masculinos não se originam do temperamento psíquico instintivo das mulheres com a mesma forma ou tom daqueles da sua natureza feminina.
Portanto, por vivermos, como vivemos, num mundo que exige tanto a ação meditativa quanto a ação concreta, considero muito útil o emprego do conceito de uma natureza masculina ou animus na mulher. Quando em perfeito equilíbrio, o animus atua como auxiliar, companheiro, amante, irmão, pai, rei. Isso não quer dizer que o animus seja rei da psique da mulher, como poderia sustentar um ponto de vista patriarcal doentio. Quer dizer, sim, que existe um aspecto majestoso na psique da mulher, o de um rei que serve com carinho à natureza selvagem, que deve trabalhar para defender a mulher e seu bem-estar, governando o que ela lhe designar, reinando sobre os territórios psíquicos que ela lhe conceder.
Pois é assim que deve ser, mas na história o animus persegue outras metas em detrimento da natureza selvagem e, à medida que o rio se enche de detritos, a própria corrente passa a envenenar outros aspectos da psique criativa, especialmente os futuros filhos da mulher.
O que acontece quando a psique passou ao animus o poder do rio e esse poder foi mal utilizado? Quando eu era criança, alguém me disse que era tão fácil criar para o bem quanto para o mal. Descobri que isso não é verdade. É muito mais difícil manter o rio limpo. É muito mais fácil deixá-lo ficar imundo. Digamos, então, que manter a correnteza límpida é um desafio natural que todas nós enfrentamos.
Esperamos corrigir a turvação com a maior rapidez e abrangência possível. Mas, e se algo assumir o controle do fluxo criador, tornando-o cada vez mais enlameado? E se ficarmos presas nessa armadilha? E se de algum modo começarmos obstinadamente a extrair frutos dessa situação, a não só gostar dela mas nela confiar, a ganhar nosso pão com ela, a nos sentirmos vivas através dela? E se a usarmos para levantar da cama pela manhã, para nos levar a qualquer lugar, para fazer de nós alguém aos nossos próprios olhos? Essas são as armadilhas que esperam por todas nós.
O hidalgo nessa história representa um aspecto da psique da mulher que, para usar uma linguagem coloquial, "apodreceu". Ele se corrompeu. Ele extrai vantagem de fabricar veneno e, de certo modo, está vinculado à vida insalubre. Ele é como um rei que governa por meio de uma fome mal orientada. Ele nem é sábio nem jamais poderá ser amado pela mulher que ele simula servir.
É muito bom para a mulher ter uma figura de um animus devotado, forte, capaz de uma visão penetrante, capaz de ouvir tanto no mundo objetivo quanto no mundo subterrâneo, capaz de prever a probabilidade do que ocorrerá a seguir, tocando decisões quanto à luz e à justiça a partir da soma do que ele percebe e vê em todos os mundos. Nesse caso, porém, ele é um herege. O papel do hidalgo, do rei ou do mentor na psique da mulher destina-se a ajudar a realizar seus potenciais e suas metas, a tornar manifestas as idéias e ideais que lhe são caros, a avaliar a justiça, a se encarregar dos armamentos, a criar estratégias quando estiver ameaçada, a ajudar a unir todos os seus territórios psíquicos.
Quando o animus se transformou numa ameaça, como vemos na história, a mulher perde a confiança nas suas decisões. À medida que seu animus se vê enfraquecido pela sua parcialidade, a água do rio passa de algo que é essencial à vida para algo a ser abordado com a mesma precaução com que abordamos um assassino de aluguel. Ocorre, então, a fome na terra e a poluição no rio.
Criar é creare em latim,1 6 significando produzir, fazer (vida), produzir algo onde antes não havia nada. É o ato de beber água do rio poluído que provoca a suspensão da vida interior e, por conseguinte, da exterior. Na história, essa poluição gera a deformação dos filhos, e esses filhos simbolizam as novas idéias e ideais. Os filhos representam nossa capacidade de produzir algo onde antes não havia nada.
Podemos reconhecer que essa deformação do novo potencial está ocorrendo quando começamos a questionar nossa capacidade, e especialmente nosso direito, de pensar, agir ou ser.
Mulheres talentosas, mesmo quando resgatam sua vida criativa, mesmo quando obras lindas saem das suas mãos, da sua caneta, do seu corpo, continuam a questionar se são realmente escritoras, pintoras, artistas, gente, gente de verdade. E é claro que elas são reais, muito embora possam gostar de se atormentar quanto ao que constitui a realidade. Uma agricultora é real quando olha suas terras lá fora e planeja o plantio de primavera. Uma corredora é real quando dá o primeiro passo. Uma flor é real quando ainda está no caule da planta-mãe. Uma árvore é real quando ainda é uma semente dentro de um pinhão. Uma árvore adulta é um ser vivo real. Real é tudo o que tem vida.
O desenvolvimento do animus varia de mulher para mulher. Não se trata de uma criatura perfeitamente formada que salta do ventre dos deuses. Ele parece ter uma qualidade inata, mas também precisa "crescer", ser ensinado e treinado. Ele se estina a ser uma força poderosa e direta. No entanto, quando o animus sofre danos por parte de todas as inúmeras forças da cultura, algo de desgastante, de mesquinho, ou uma espécie de entorpecimento, que algumas pessoas chamam de "neutralidade", se interpõe entre o mundo interno da psique e o mundo externo da página em branco, da tela intocada, da pista de dança, da sala da diretoria, da platéia à espera. Esse "algo" coagula o rio, impede o pensamento, emperra a caneta e o pincel, trava as articulações por um tempo interminável, abafa as novas idéias e, assim, sofremos.
Ocorre um estranho fenômeno com a psique. Quando a mulher sofre de um animus negativo, qualquer esforço no sentido de um ato criativo aciona esse animus para que ele a agrida. Ela apanha a caneta para escrever, e a fábrica vomita seu veneno sobre o rio. Ela pensa em se matricular num curso, ou começar aulas, mas pára no meio, sufocada com a falta de apoio e alimento interiores. A mulher acelera, mas não pára de recuar. Há mais desenhos de bordado não-terminados, mais canteiros de flores não-concretizados, mais caminhadas não-feitas, mais bilhetes não-escritos só para dizer "Eu me importo com você", mais línguas estrangeiras jamais aprendidas, mais aulas de música abandonadas, mais tecidos suspensos no tear numa espera interminável...
Essas são as formas deterioradas da vida. São os filhos envenenados de La Llorona. E todas elas são jogadas no rio; são jogadas de volta às águas poluídas que tanto as afligiam desde o início. Nas melhores circunstâncias arquetípicas, elas deveriam borbulhar por algum tempo e, como uma fênix, deveriam renascer das cinzas sob uma nova forma. Aqui, porém, algo está errado com o animus e, portanto, com a capacidade de manifestar e implementar nossas idéias no mundo. E o rio está tão cheio de excrementos de complexos que nada pode nascer dele para uma nova vida.
E assim chegamos à parte mais difícil. Temos de entrar na lama e procurar por isso tudo. Como La Llorona, temos de dragar o rio à procura da nossa vida da alma, da nossa vida criativa. E ainda mais uma tarefa, também árdua: precisamos purificar o rio para que La Llorona possa ver, para que ela e nós possamos encontrar a alma das crianças e nos sentirmos em paz para criar novamente.
A cultura torna piores suas "fábricas" e sua poluição através do seu imenso poder de desvalorização do feminino — e sua incompreensão quanto à natureza mediadora do masculino. Infelizmente a cultura muitas vezes mantém o animus da mulher no exílio insistindo para que seja resolvida uma daquelas perguntas insolúveis e disparatadas que os complexos, querem dar a entender que são válidas e diante das quais muitas mulheres se intimidam. "Mas será que você é mesmo uma escritora [artista, mãe, filha, irmã, esposa, amante, trabalhadora, dançarina, pessoa] de verdade?" "Será que você realmente é talentosa [prendada, valiosa]?" "Será que você realmente tem algo a dizer que valha a pena [que seja esclarecedor, que irá ajudar a humanidade, que irá descobrir uma cura para o antraz]?
Não é de surpreender que, quando o animus da mulher é dominado por uma fabricação psíquica de natureza negativa, a produção da mulher se reduz, à medida que vão definhando sua confiança e sua força criadora. Mulheres nesse tipo de aflição afirmam "não conseguir ver uma saída" do chamado bloqueio de escritor, ou da sua causa. Seu animus está extraindo todo o oxigênio do rio, e elas se sentem "extremamente cansadas" e sofrem uma "tremenda perda de energia", parecem não conseguir "dar o primeiro passo", sentem-se refreadas por alguma coisa.

CAPITULO 10 - As águas claras: O sustento da vida criativa - CLARISSA PINKOLA ESTES