QUANDO A DOR SE TRANSFORMA EM POEMA
– POR RUBEM ALVES
Um
deus fraco pode chorar comigo. E por isso nos amamos…
Hoje,
sexta-feira, 20 de setembro de 1996, minha vontade é não escrever. Escrevo
como sonâmbulo, na esperança, talvez, de que as palavras consigam diminuir a
minha dor. Mas eu não quero que a dor diminua. Não quero ser consolado. Não
quero ficar alegre de novo. Quando a dor diminui é porque o esquecimento já fez
o seu trabalho. Mas eu não quero esquecer. O amor não suporta o esquecimento.
Vazia
das palavras que a dor roubou, a alma se volta para os poetas. Não, na verdade
não é bem assim. A alma não se volta para nada. Ela está abraçada com a sua
dor. São os poetas que vêm em nosso auxílio, mesmo sem serem chamados. Pois
essa é a vocação da poesia: pôr palavras nos lugares onde a dor é demais. Não
para que ela termine, mas para que ela se transforme em coisa eterna: uma
estrela no firmamento, brilhando sem cessar na noite escura. É isso que o amor
deseja: eternizar a dor, transformando-a em coisa bela. Quando isso acontece, a
dor se transforma em poema, objeto de comunhão, sacramento.
A
dor é tanta que a procura das palavras – brinquedo puro quando se está alegre –
se transforma num peso enorme, bola de ferro que se arrasta, pedra que se rola
até o alto da montanha, sabendo ser inútil o esforço, pois ela rolará de novo
morro abaixo. Sinto uma preguiça enorme, um desânimo sonolento de escrever.
Arrasto-me. Obrigo-me a me arrastar. Empurro as palavras como quem empurra
blocos de granito. Gostaria mesmo é de ficar quieto, não dizer nada, não
escrever nada.
Será
que algum jornal aceitaria publicar uma crônica que fosse uma página em branco,
silêncio puro? Escrevo para me calar, para produzir silêncio. Como numa
catedral gótica: as paredes, as colunas e os vitrais servem só para criar um
espaço vazio onde se pode orar. Álvaro de Campos entende que a poesia é isso, uma
construção em palavras em cujas gretas se ouve uma outra voz, uma melodia que
faz chorar.
Sei
que minhas palavras são inúteis. A morte faz com que tudo seja inútil. Olho em
volta as coisa que amo, os objetos que me davam alegria, o jardim, a fonte, os
CDs, os quadros, o vinho (ah, o riso dele era uma cachoeira, quando abria uma
garrafa de vinho!): está tudo cinzento, sem brilho, sem cor, sem gosto. Não
abro o vinho: sei que ele virou vinagre. Rego as plantas por obrigação. O dever
me empurra: elas precisam de mim. Agrado o meu cachorro por obrigação também.
Ele não é culpado.
Atendo
o telefone e sou delicado com as pessoas que falam comigo: elas ainda não
receberam a notícia nem receberão. Tentei dar a notícia a algumas pessoas.
Disse-lhes que fazia seis horas que chorava sem parar. Elas riram. Não por
maldade, mas por achar que eu estava brincando.
Meu
melhor amigo morreu. Portanto, todas as palavras são inúteis. Sobre a cachoeira
do seu riso está escrito “nunca mais”. Nenhuma delas será capaz de encher o vazio.
Recordo as palavras da Cecília – palavras que, acredito, foram escritas muito
depois da dor, depois que a dor já se havia transformado em beleza:
(…) Mas tudo é inútil, porque os teus ouvidos estão como
conchas vazias, e a tua narina imóvel não recebe mais notícia do mundo que
circula no vento. (…) Mas tudo é inútil, porque estás encostada à terra fresca,
e os teus olhos não buscam mais lugares nessa paisagem luminosa, e as tuas mãos
não se arredondam já para a colheita nem para a carícia.
Meu
melhor amigo. Amigo é uma pessoa que, só de lembrar-se de você, dá uma risada
de felicidade. Assim são os amigos – não há os mais nem os menos amigos. Ou é
ou não é. Todos são iguais. Mas sei que meus outros amigos entenderão, quando
digo que o Elias Abrahão era o meu melhor amigo. Se a gente tem dez filhos e um
morre, aquele era o que a gente mais amava. Se um pastor tem cem ovelhas e uma
se perde, aquela era a de que ele mais gostava. O Elias morreu. Ele era o meu
melhor amigo. Meu corpo e minha alma, hoje, são um vaso cheio com a dor do seu
vazio.
O poeta W.H. Auden já disse, exato, o que estou
sentindo.
Que parem os relógios, cale o telefone,
jogue-se ao cão um osso e que não ladre mais,
que emudeça o piano e o tambor sancione
a vinda do caixão e seu cortejo atrás.
Que os aviões, gemendo acima em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Que as pombas guardem luto – um lenço no pescoço –
e os guardas usem finas luvas cor de breu.
Era meu norte, sul, meu leste, oeste, enquanto viveu;
meus dias úteis, meu fim de semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto,
quem julgue o amor eterno, como eu fiz, se engana.
É hora de apagar as estrelas – são molestas,
guardar a lua, desmontar o sol brilhante,
de despejar o mar, jogar fora as florestas,
pois nada mais há de certo doravante.
Em
momentos assim tenho dó imenso das pessoas que têm um deus forte. Pois –
coitadas – estão perdidas diante da morte.
Ter
um deus forte é saber que, se tivesse querido, ele teria evitado a morte. Se
não evitou é porque não quis. Ora, se foi ele quem matou, ele não pode estar
sofrendo. Está é feliz, por ter feito o que queria. Assim, ele é culpado da
minha dor. Eu e ele estamos muito distantes, infinitamente distantes. Como
poderia amá-lo – um deus assim tão cruel? Mas, se ele é um deus fraco, isso
quer dizer que não foi ele quem ordenou – ele não pôde evitar. Um deus fraco
pode chorar comigo. Ele até se desculpa: “não foi possível evitá-lo. Eu bem que
tentei. Veja só estas feridas no meu corpo: elas provam que me esforcei…”. Ele
chora comigo. E por isso nos amamos.
Tenho
no meu quintal uma árvore, sândalo, de perfume delicioso. Foi o Elias quem me
deu a mudinha, vinda do Líbano. Cuidarei dela com redobrado carinho. De vez em
quando vou regá-la com vinho. Não me surpreenderei se ela ficar bêbada e
começar a dar risadas. Saberei que o Elias está por perto.
“Amigo é uma pessoa
que, só de lembrar-se de você, dá uma risada de felicidade”. Doracino Naves
Fonte: As melhores Crônicas de Rubem Alves,
5ª reimpressão, Comacchia Livraria e Editora Ltda., São Paulo, páginas 39/41.