Como se
sente uma mulher
Aconteceu ontem. Saio do aeroporto. Em uma caminhada
de dez metros, só vejo homens. Taxistas do lado de fora dos carros conversando.
Funcionários com camisetas “posso ajudar?”. Um homem engravatado com sua
malinha e celular na mão. Homens diversos, espalhados por dez metros de
caminho. Ao andar esses dez metros, me sinto como uma gazela passeando por
entre leões. Sou olhada por todos. Medida. Analisada. Meu corpo, minha bunda,
meus peitos, meu cabelo, meu sapato, minha barriga. Estão todos olhando.
Aconteceu quando eu tinha treze anos. Praticava um esporte
quase todos os dias. Saía do centro de treinamento e andava cerca de duas
quadras para o ponto de ônibus, às seis da tarde. Andava pela calçada quase
vazia ao lado de uma grande rodovia. Dessas caminhadas, me recordo dos
primeiros momentos memoráveis desta violência urbana. Carros que passavam mais
devagar do meu lado e, lá de dentro, eu só ouvia uma voz masculina: “gostosa!”.
Homens sozinhos que cruzavam a calçada, olhavam para trás e suspiravam: “que delícia.”
Eu tinha treze anos. Usava calça comprida, tênis e camiseta.
Agora, multiplique isso por todos os dias da minha vida.
Sei que para homens é difícil entender como isso pode ser
violência. Nós mesmas, mulheres, nos acostumamos e deixamos pra lá. Nós nos
acostumamos para conseguir viver o dia a dia.
Esses dias, estava sentada na praia vendo o mar, e dele saiu
uma moça. Passou por um rapaz que disse algo. Ela só saiu de perto e veio na
minha direção. Dei boa noite, ela falou que a água estava uma delícia, e
conversamos um pouco. Perguntei se o cara havia lhe falado alguma besteira. Ela
disse, “falou, mas a gente tá tão acostumada, né?, começa a ignorar
automaticamente”.
O privilégio é invisível. Para o homem, só é possível ver o
privilégio se houver empatia. Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos,
todos os homens foram subjugados, violentados, assassinados, podados,
controlados. Tente imaginar um mundo onde, por cinco mil anos, só mulheres
foram cientistas, físicas, chefes de polícia, matemáticas, astronautas,
médicas, advogadas, atrizes, generais. Tente imaginar um mundo onde, por cinco
mil anos, nenhum representante do seu gênero esteve em destaque, na televisão,
no teatro, no cinema, nas artes. Na escola, você aprende sobre a história feita
pelas mulheres, a ciência feita pelas mulheres, o mundo feito pelas mulheres.
No seu texto “Um teto todo seu”, Virgínia Woolf descreve por
que seria impossível para uma hipotética irmã de Shakespeare escrever de forma
genial como ele. Woolf diz:
“quando lemos sobre uma bruxa sendo queimada, uma mulher
possuída por demônios, uma mulher sábia vendendo ervas… acho que estamos
olhando para uma escritora perdida, uma poeta anulada.”
Desde o início do patriarcado, há cinco mil anos, as mulheres
não tiveram liberdade suficiente para serem cientistas ou artistas. Woolf
explica:
“liberdade intelectual depende de coisas materiais. … E
mulheres foram sempre pobres, não por duzentos anos, somente, mas desde o
início dos tempos.”
Esse argumento não serve somente para mulheres: negros,
pobres e outras minorias não poderiam ser geniais poetas pois, para isso, é
necessário liberdade material.
(Para uma análise mais completa, recomendo: “Um
teto todo seu” de Virgínia Woolf: A produção intelectual e as condições
materiais das mulheres.)
Embora o mundo esteja em processo de mudança, ainda existem
menores oportunidades e reconhecimento para mulheres e minorias exercerem
qualquer ocupação intelectual. Leitores de uma página do facebook sobre
ciências ainda supõem que o autor seja homem e comentaristas de televisão não
consideram manifestações culturais que vêm da favela como cultura
de verdade.
É verdade: hoje, a vida é muito melhor, principalmente para a
mulher ocidental como eu. Mas, mesmo sendo uma mulher livre e bem-sucedida
vivendo em uma metrópole ocidental, ainda sinto na pele as consequências destes
cinco mil anos de opressão. E, se você quiser ver essa opressão, não precisa ir
nos livros de história. É só ligar a televisão:
Rio de Janeiro, 2013. Um casal é sequestrado em uma van. As
sequestradoras colocaram um strap-on sujo, fedido de merda e mofo, e estupraram
o rapaz. Todas elas, uma a uma, enfiavam aquela pica enorme no cu do moço, sem
camisinha e sem lubrificante. A namorada, coitada, tentou fazer algo mas foi
presa e levou chutes e socos.
Ao ver esta notícia, você se coloca no lugar da vítima (que
sofreu uma das piores violências físicas e psicológicas existentes) ou no lugar
de quem assistiu? Naturalmente troquei os gêneros: a violência real aconteceu
com uma mulher.
Quantas violências eu sofro só por ser mulher?
Na infância, fui impedida de ser escoteira pois isso não era
coisa de menina. Fui estuprada aos oito anos. (Eu e pelo menos dois terços das
mulheres que conheço e que você conhece sofreram um estupro e provavelmente não
contaram para ninguém.) Sofri a pré-adolescência inteira por não me comportar
como moça. Por não ter peitos. Por não ter cabelos longos e lisos. Desde sempre
tive minha sexualidade reprimida pela família, pela sociedade, pela mídia.
Qualquer coisa que eu pisasse na bola seria motivo para ser chamada de vadia.
Num dos primeiros empregos, escutei que mulheres não trabalham tão bem porque
são muito emocionais e têm TPM. Em um outro emprego, minha chefe disse que meu
cabelo estava feio e pagou salão para eu ir fazer escova e ficar mais
apresentável pros clientes. Decidi que não quero ser escrava da depilação e sou
olhada diariamente com nojo quando ando de shorts ou blusinha sem mangas. Já
usei muita maquiagem, só porque a televisão e os outdoors mostram mulheres
maquiadas, e portanto é muito comum nos sentirmos feias de cara limpa. Você,
homem, sabe o que é maquiagem? Tem um produto para deixar a pele homogêna, um
pra disfarçar olheiras, outro para disfarçar manchas, outro para deixar a
bochecha corada, outro para destacar a sobrancelha, outro para destacar os
cílios, outro para colorir as pálpebras, outro para colorir os lábios. Quantas
vezes você passou tantos produtos na sua cara só porque seu chefe ou seu
primeiro encontro vai te achar feio de cara limpa? Quando estou no metrô
preciso procurar um cantinho seguro para evitar que alguém fique se roçando em
mim. Você faz isso? Quando vou em reuniões de família, me perguntam por que
estou tão magra, e o que fiz com o cabelo e quem estou namorando. Para o meu
primo, perguntam o que ele está estudando e no que está trabalhando. Na
televisão, 90% das propagandas me denigrem. Quase nenhum filme me representa ou
passa no teste de
Bechdel. Todas as mulheres são mostradas com roupas sexy, mesmo as super
heroínas que deveriam estar usando uma roupa confortável para a batalha. As
revistas me ensinam que o meu objetivo na cama é agradar o meu homem. Enquanto
você, menino, comparava o seu pau com o dos amiguinhos, eu, menina, era
ensinada que se masturbar é muito feio e que se eu usar uma saia curta não
estou me dando o respeito. Quanto tempo demorei para me desfazer da repressão
sexual e virar uma mulher que adora transar? Quanto tempo demorei para me
soltar na cama e conseguir gozar, enquanto várias das minhas colegas continuam
se preocupando se o parceiro está vendo a celulite ou a dobrinha da cintura e,
por isso, não conseguem chegar ao gozo? Quanto tempo demorei para conseguir
olhar para um pau e transar de luz acesa? Quantas vezes escutei, no trânsito,
um “tinha que ser mulher”? Quantas vezes você fechou alguém e escutou “tinha
que ser homem”? Tudo isso para, no fim do dia, ir jantar no restaurante e não receber a conta quando ela foi pedida pois há
cinco mil anos sou considerada incapaz. E tudo isso, porra, para escutar que
estou exagerando e que não existe mais machismo.
Isso é um resumo muito pequeno do que eu sofro ou corro o
risco de sofrer todo dia. Eu, mulher branca, hetero, classe média. A negra
sofre mais que eu. A pobre sofre mais que eu. A oriental sofre mais que eu. Mas
todas nós sofremos do mesmo mal: nenhum país do mundo trata suas mulheres tão bem quanto seus
homens. Nenhum. Nem a Suécia, nem a Holanda, nem a Islândia! Em todo o
mundo “civilizado” sofremos violência, temos menos acesso à educação, ao
trabalho ou à política.
Em todo o mundo, somos ainda as irmãs de Shakespeare.
* * *
E você, leitor homem? Quando é abordado de forma hostil por
um estranho na rua, pensa “por favor, não leve meu celular” ou “por favor, não
me estupre”?
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notícia. Esse artigo já foi lido por mais de 600.000 pessoas,
em menos de dois dias. Tivemos recorde histórico de visitas no PdH, com uma
tema de grande relevância. Agradeço a Claudia pela imensa confiança em publicar
seu relato conosco.
Fonte: http://papodehomem.com.br/como-se-sente-uma-mulher/